Na manhã de 24 de fevereiro, a pintora Marita Vaskova acordou na casa que também lhe serve de atelier, um pequeno T1 atrás da Avenida de Roma, com a notícia de que a Rússia invadira a Ucrânia – a sua Ucrânia, o país dela, a pátria que tivera de deixar há 23 anos, ainda com o marido, para tentar uma vida melhor em Portugal.
A sua casa é um espaço de memórias de duas vidas: há quadros com as cores néon que ela encontrou em Lisboa, como estantes cheias de livros com títulos em ucraniano.
Qualquer ucraniano em Portugal tem a dureza da História na sua história pessoal. A emigração em massa, nos finais dos anos 90, era a fuga de um país em pobreza extrema que se seguia à crise da queda da União Soviética. Esses 100 mil ucranianos que chegaram a viver em Portugal (dados do SEF) vinham de vidas longas: da opressão sob a batuta da URSS, dos nacionalistas, e da desregulação e complexidade das relações pós Perstroika.
Marita viveu isso tudo. Tem, aos 73 anos, profundas rugas na face como uma espécie de cartografia dessa odisseia. Na Ucrânia era engenheira e fazia desenho industrial. Morava na cidade de Kirovohrad (hoje, Kropyvnytskyi).
Foi já com 50 anos, em 1999, que Marita e a família chegaram a Lisboa. Ela, o marido, que era artista, pintor, e as duas filhas dela.
As confusões da História recente faziam com que os portugueses também tivessem muitas dúvidas: na escola perguntavam à filha de Marita, Kateryna de 17 anos, que “país era esse” de onde ela vinha. “Fica na Rússia?”, diziam.
Não sabendo, esses colegas da escola de Kateryna estavam a revelar uma ferida maior, aquela que existe desde sempre entre os dois países, e a razão – se é que a há – de todos os dramas, ingerênciais, provocações e guerras. Dias antes da guerra Putin dissera: a Ucrânia não existe.